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O Velho Jardineiro

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Era um velho homem, de idade avançada e
cabelos cor da neve, com um nariz curvado que lhe atribuía um ar pensativo a
cada ruga que demonstrava em seu rosto cansado. Seus olhos cor-de-jade tinham
em cada pálpebra a dignidade sofrida de Atlas, carregando o firmamento em suas
costas. O homem cuidava de um jardim na pequena cidade de Iguaba do estado do
Rio de Janeiro, criando tulipas de diversas cores, indo do roxo tradicional a
um calmo amarelo, até mesmo um vermelho vivaz. O homem tinha orgulho em seu
trabalho, e todo dia, ao nascer do sol, o povo da cidade acordava para ver o
homem diligente em seu ofício, criando flores para a cidade, sem nunca pedir um
cruzado em retorno.

Os jovens da cidade tinham um apreço
especial pelo homem, a quem chamavam de “Vovô Tulipa” por suas flores, e os
rapazes da cidade muitas vezes iam ao homem pedir por arranjos de flores para
darem às garotas du jour. O homem
tinha gosto em ver tais rapazes pedindo-lhe flores, e sempre lhes dava um buquê
e uma “dica” que lhe parecia romântica no momento. Ele ajeitava as vestes dos
apaixonados, com todo o carinho de um pai, e lhes dizia cada:

— Vá àquela mulher, meu rapaz, e diga-lhe o
que sente. O cortejo não pode se deixar impedir pela timidez!

O homem era feliz com sua vida cuidando de
seu humilde jardim, sossegado em seu canto, longe da vista da auto-estrada,
escondido pelas casas ao seu redor do resto do mundo, coberto pela sombra do
fim de tarde, acariciado pela brisa da manhã, sua labuta lhe trazia uma alegria
calma, uma serenidade que ele apreciava toda manhã ao acordar antes do sol. Seus
dedos tinham calos de seu trabalho, e seus pés traziam bolhas por suas
caminhadas, mas o homem aguentava tais dores, e seguia em frente com a criação
de suas tulipas, cada uma delas trazendo beleza e alegria ao jardim que ele
tinha adotado.

Toda manhã, o homem caminhava de sua
modesta casa no fim de uma viela a três blocos do jardim, carregando consigo um
regador vazio, uma tesoura de jardim, duas luvas, e sementes novas para seu
jardim, muitas vezes conseguidas nas lojas próximas da auto-estrada que ia de
Niterói para Cabo Frio, a RJ-124. A rotina do homem era simples: Ao chegar ao
jardim, ele depositava suas ferramentas no banco verde onde ele se sentava após
encerrar seu dia, ia até o poço ao lado do jardim e, com a ajuda de um gancho
amarrado a uma corda com roldanas, descia seu regador ao fundo do poço e, com
bastante esforço, trazia o regador de volta, e começava o longo dia de regar as
plantas, cortar raízes, fazer buquês, e cuidar de suas amadas flores, dia após
dia. Ninguém sabia o seu nome, exceto que ele adorava falar sobre suas flores,
e se perdia em seus próprios pensamentos, tagarelando sobre tulipas para quem
quer que ousasse ouvi-lo. Por isso, muitos dos rapazes que lhe pediam flores
evitavam ouvi-lo quando ele tentava falar-lhes, e o homem ficava sozinho com
suas flores. Parte dele sentia-se isolado, mas a outra parte estava apaixonada
demais por seu trabalho para dar atenção à sua solidão. E assim anos se
passavam.

Um dia, quando o homem já tinha uma idade
além de avançada, ele chegou ao seu jardim como todos os outros dias. Colocou
suas ferramentas no banco, dirigiu-se ao poço e pendurou seu regador no gancho
do mesmo. Com a roldana, ele lentamente desceu o regador à água, e esperou alguns
segundos até que o regador se enchesse. Quando se deu por satisfeito, começou a
tentar girar a roldana na direção contrária, mas o peso se provou demasiado
grande para suas mãos cheias de calos e machucados. Ele puxou e puxou, mas no
fim suas forças se esvaíram, e ele acabou por se sentar à base do poço,
recuperando seu fôlego lentamente. O homem sentiu suas mãos doerem e, apesar de
querer se levantar, sentiu-se cansado demais para fazê-lo. Horas se passaram,
até que o sol raiou e começou a brilhar forte sobre seu rosto. Ele conseguiu se
levantar e foi-se sentar à sombra, esperando alguém passar para que pudesse
pedir ajuda.

Logo um jovem, a quem ele conhecia há anos,
atravessou seu jardim. O homem levantou-se ligeiramente, e chamou o rapaz.

— Rafael! Meu jovem! — ele chamou,
entusiasmado.

— Vovô Tulipa! — respondeu o jovem,
sorrindo. Há três anos atrás, o homem tinha lhe ajudado a cortejar a mulher que
hoje era sua esposa — Como vai?

— Podia estar melhor, rapaz. Diga-me, teria
como você me fazer um favor? — o homem disse, sentindo-se novamente cansado.

— Ah, desculpe-me, senhor, mas tenho
compromissos hoje. Tenho trabalho, faculdade, e hoje é aniversário de casamento
meu, dá pra acreditar? Mas, te prometo, amanhã hei de ajudá-lo.

— Entendo, jovem — disse o homem
tristemente, e voltou a sentar-se.

Tal conversa se repetiu para o homem
incontáveis vezes durante o dia, e a cada vez que lhe recusavam ajuda, mais ele
se sentia cansado, caindo cada vez mais em desespero. O dia se encerrou, e seu
regador ainda estava preso no fundo do poço. Todos a quem ele pediu ajuda
tinham coisas mais importantes para fazer, e agora ele se encontrava
desesperado, sem querer ir para casa sem seu precioso regador, mas temeroso
demais para passar a noite a céu aberto. Por fim, seu medo ganhou e ele
caminhou até sua casa, onde mal conseguiu dormir.

O dia seguinte se levantou, e com ele o
velho caminhou até o jardim, onde suas flores estavam pálidas, com sede. O
velho tentou novamente retirar seu regador do poço, mas seus dedos se soltaram
antes mesmo que ele desse a ordem, e ele novamente se viu em desespero. O dia
se passou como o anterior, e logo uma nova rotina se estabeleceu. Todo dia, o
velho ia ao jardim, ver suas flores lentamente morrerem, e ver os jovens que
outrora tanto ajudara, agora o ignoravam, e esqueciam-se de seu jardim. O que
antes era um belo jardim, com tulipas de todas as cores, cada uma muito
bem-cuidada, agora se definhava, e se tornava feio e pútrido diante dos olhos
impotentes do velho, que ainda se obrigava a fazer a dolorosa jornada todo dia.
Quando chovia, ele se via agradecendo a ninguém em particular, e se sujeitava
ao frio da chuva apenas pela alegria que ela trazia às suas poucas flores que
ainda viviam. Dia após dia, o velho marchava ao jardim, e se via definhando
junto com suas amadas flores. Onde estavam os jovens, ele se perguntava, onde
estava a ajuda? Seus ossos agora já doíam demais, e seus calos não lhe davam
folga. A marcha se tornava cada dia mais dolorosa, mais longa, mais difícil, e
as bolhas de seus pés cada vez mais incômodas. Mas todo dia, ele lá caminhava,
para ver suas amadas flores morrendo, e tentar dia após dia recuperar seu
regador. Mesmo novos regadores se tornavam pesados demais para ele,
independentes de ele os encher em casa ou na casa de vizinhos do jardim. Seus
dedos já não tinham forças, e, em breve, nem suas pernas.

Rafael um dia retornou ao jardim, onde
prometera ajudar “Vovô Tulipa” com aquilo que tinha pedido, seja lá o que
fosse. Quando lá chegou, não viu sinal do velho, nem do jardim. Do terreno
baldio que o jardim outrora fora, ele tinha retornado a ser, e não tinha mais a
beleza e o vigor que o jovem tinha conhecido por toda sua infância. Ele decidiu
procurar pelo velho, mas percebeu que nunca soube seu nome, ou onde morava. Tentou
perguntar aos vizinhos do jardim, mas estes também não sabiam e, mais
importante, nunca se importaram. Rafael observou o jardim morto uma nova vez, e
não viu sequer uma tulipa. O que era uma vez colorido, agora era marrom, sujo,
e morto. O rapaz deu de ombros, como era de seu feitio, e retornou às suas
tarefas do dia-a-dia, esquecendo-se do velho mais uma vez.

E o jardim, que uma vez ostentava beleza
simples e honesta, agora não tinha mais sinal de vida ou de carinho, e esperava
apenas o próximo dono do terreno para transformar-se numa casa, num prédio, ou
o que quer que fosse. O povo da cidade lembrava-se do jardim que lá habitava,
mas memórias contentes nunca nos habitam por muito tempo; os problemas do
dia-a-dia muito mais nos importam que um segundo de felicidade, seja lá qual
fosse. E o velho, cujo nome ninguém soube, cujo passado era um mistério para
todos, definhou em seu lar, cuidando das últimas tulipas que tinha forças para,
um pequeno buquê, todo amarelo, que nunca teve espaço para crescer, e logo
secou e morreu, junto com o velho.
Uma história sobre um homem velho. Que é um jardineiro. Aproveitem.
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